Depois do "Remanejamento" como ficara a sala?

terça-feira, 13 de julho de 2010

Peladas - Armando Nogueira

Esta pracinha sem aquela pelada virou uma chatice completa: agora, é uma babá
que passa, empurrando, sem afeto, um bebê de carrinho, é um par de velhos que
troca silêncios num banco sem encosto.

E, no entanto, ainda ontem, isso
aqui fervia de menino, de sol, de bola, de sonho: "Eu jogo na linha! eu sou o
Lula!; no gol, eu não jogo, tô com o joelho ralado de ontem; vou ficar aqui
atrás: entrou aqui, já sabe". Uma gritaria, todo mundo se escalando, todo mundo
querendo tirar o selo da bola, bendito fruto de uma suada vaquinha.

Oito de cada lado e, para não confundir, um time fica como está; o outro joga sem
camisa.

Já reparei uma coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é
um ser muito compreensivo que dança conforme a música: se está no Maracanã, numa
decisão de título, ela rola e quiçá com um ar dramático, mantendo sempre a mesma
pose adulta, esteja nos pés de Gérson ou nas mãos de um gandula.

Em compensação, num racha de menino ninguém é mais sapeca: ela corre para cá, corre
para lá, quica no meio-fio, para de estalo no canteiro, lambe a canela de um,
deixa-se espremer entre mil canelas, depois escapa, rolando, doida, pela
calçada. Parece um bichinho.

Aqui, nessa pelada inocente é que se pode
sentir a pureza de uma bola. Afinal, trata-se de uma bola profissional, uma
número cinco, cheia de carimbos ilustres: "Copa Rio-Oficial", "FIFA - Especial".
Uma bola assim, toda de branco, coberta de condecorações por todos os gomos
(gomos hexagonais!), jamais seria barrada em recepção do Itamaraty.

No entanto, aí está ela, correndo para cima e para baixo, na maior farra do mundo,
disputada, maltratada até, pois, de quando em quando, acertam-lhe um bico, ela
sai zarolha, vendo estrelas, coitadinha.

Racha é assim mesmo: tem bico,
mas tem também sem-pulo de craque como aquele do Tona, que empatou a pelada e
que lava a alma de qualquer bola. Uma pintura.

Nova saída.

Entra na praça batendo palmas como quem enxota galinha no quintal. É um velho com cara
de guarda-livros que, sem pedir licença, invade o universo infantil de uma
pelada e vai expulsando todo mundo. Num instante, o campo está vazio, o mundo
está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves feitas de camisas.

O espantalho-gente pega a bola, viva, ainda, tira do bolso um canivete e dá-lhe a
primeira espetada. No segundo golpe, a bola começa a sangrar. Em cada gomo o
coração de uma criança.

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